Comprimidos

IV

Quando as coisas lhe corriam mal, ficava bem, quando lhe corriam bem, melhor.

V

Era muito superficial, toda a sua profundidade estava à superfície.

Da importância do humor

O humor
tem de incomodar,
chocalhar a realidade,
despertar quem dorme,
dar vida aos mortos e,
sobretudo,
ser sério, muito sério,
tão sério como as coisas
com que brinca.
Só assim nos fará
rir de nós mesmos.

Eu

Em mim existem
sempre
dois lados
que se afirmam
e se negam.
E com tal intensidade
o fazem
que muitas vezes
acredito ser
apenas o
vazio que
os separa.

Um poema em mente

Evito, sempre que escrevo,
os advérbios terminados em mente,
ficam mal em qualquer texto,
e quem disser o contrário
mente
descaradamente
Assim, cada vez que um deles apenas
assoma,
impertinente,
elimino-o sem mais delongas
rapidamente
apaixonadamente
E muito mais podia dizer,
mas fico afinal por aqui,
finalmente,
e dou por terminado este poema
que muito mente.

Em ti

Entro em ti
como num
quarto escuro,
os olhos
bem abertos,
todos os sentidos
despertos,
à espera de uma
revelação.

O homem e o escritor

"Gosto do que escreves."
"Dizes isso porque gostas de mim."
"Preferias que gostasse do que escreves e te detestasse? Ou que gostasse de ti e detestasse o que escreves?"
"Se gostasses do que escrevo ainda que me detestasses, eu seria um óptimo escritor. Mas sabes que me considero muito mais um homem do que um escritor. Prefiro de longe que gostes de mim como homem."
"Mas não posso gostar também de ti como escritor?"
(risos)

Comprimidos

III

O amor não tem chave, ele mesmo é a chave.

Poética

I

Escrever

Quando escrevo,
sou o oráculo de
mim próprio

Desconheço-me e
adivinho-me em
todas as palavras

E se no final pouco ou
nada mais sei, é porque
sou apenas um presságio

II

Amar

O meu primeiro amor foi
o meu último amor,
e a partir daí nada mudou

todos os meus amores são
sempre o primeiro e o último,
não me perguntem porquê.

Comprimidos

I

Todos os pontos acreditam numa mesma e incontestável verdade: o universo tem um centro.

II

A magia tem um único requisito: é preciso acreditar nela.

A reviravolta

Tu sabes de ti e eu sei de
mim, disse ele. E com isto
queria afirmar que cada
um deve fazer o que tem
de fazer, que cada um pode
fazer o quer, mas depois tem
de aceitar o mesmo nos outros.
E quando assim falava,
não estava zangado, nem
mesmo triste, não senhor,
nada, mas mesmo nada disso.
Ele sempre pensara mal e
compreendera pior, mas
nunca deixara de procurar
a sua verdade, e essa verdade
estava agora ao seu alcance.
Tinha finalmente descoberto
uma filosofia que lhe assentava
como uma luva, talhada numa
frase simples e despretensiosa.
Por isso passou a repeti-la com
frequência, e, se querem saber,
nunca mais se sentiu ansioso com os
outros, que era afinal o que antes
sempre, mas sempre, lhe sucedia.

O amor és tu

Uns esperam dele milagres, outros
acusam-no de todos os males:
redenção prometida,
expiação mais que devida.

Uns negam-no com sobranceria,
outros embandeiram-no em arco,
mas todos, quase todos,
se esquecem de amar.

E no entanto o amor existe
em nós, isso é mais do que evidente,
e a forma como o vivemos
fala afinal de quem somos.

Se tens amor em ti, não lhe peças nada
não o culpes de nada, vive
apenas esse amor,
sê tu mesmo amor.

Ser

Sê tu mesmo, dizem-me,
mas por mais que me esforce
confesso não saber
muito bem o que isso seja.

Tento apenas ser eu mesmo,
ainda que para tal
tenha de ser outro.

Esta é a minha verdade.

O cão que não conseguia calar-se

Existe apenas uma realidade,
começou o cão,
e eu escutei-o em silêncio,
abanando de vez em quando a cabeça
em sinal de concordância.
Confesso que não percebi muito bem
onde ele queria chegar,
mas tenho o hábito de não discordar de
quem se expressa com verdadeira paixão,
o que era sem dúvida o caso.
Por isso ouvi com muita atenção
a sua interminável dissertação,
e no final dei-lhe os parabéns.

Uma adivinha

Sinto em mim a vida
e a morte,
inseparáveis.

Sinto em mim
quem fui, e quem
nunca serei.

Sinto em mim o que
só existe quando
o imagino.

Tudo isto eu sinto e
talvez nada disto
eu seja.

Quem sou eu?

O texto e o contexto

Ao receber por mail uma citação que recordava vagamente, coloquei-a no google e reencontrei-a, primeiro tal e qual, depois mais extensa e mais completa.

I

“Condenados a uma existência que nunca está à altura de seus sonhos, os seres humanos tiveram que inventar um subterfúgio para escapar de seu confinamento dentro dos limites do possível: a ficção. Ela lhes permite viver mais e melhor, ser outros sem deixar de ser o que já são, deslocar-se no espaço e no tempo sem sair de seu lugar nem de sua hora e viver as mais ousadas aventuras do corpo, da mente e das paixões, sem perder o juízo ou trair o coração.” Mario Vargas Llosa

II

"Condenados a uma existência que nunca está à altura de seus sonhos, os seres humanos tiveram que inventar um subterfúgio para escapar de seu confinamento dentro dos limites do possível: a ficção. Ela lhes permite viver mais e melhor, ser outros, sem deixar de ser o que já são, deslocar-se no espaço e tempo sem sair de seu lugar nem de sua hora e viver as mais ousadas aventuras do corpo, da mente e das paixões, sem perder o juízo ou trair o coração. A ficção é compensação e consolo pelas muitas limitações e frustrações que fazem parte de todo destino individual e fonte perpétua de insatisfação, pois nada mostra de forma tão clara o quão minguada e inconsciente é a vida real quanto retornar a ela, depois de haver vivido, nem que seja de modo fugaz, a outra vida — a fictícia, criada pela imaginação à medida de nossos desejos." Mario Vargas Llosa

A vida e a morte

Quando morreu, sentiu pela primeira vez uma enorme e incontrolada vontade de viver. Perdera finalmente o medo da morte.

O que quero e o que necessito

I

Um estudante perguntou um dia a mestre Atemóia como saber o que queria e o que necessitava, ao que este lhe perguntou:
Percebes então que não necessitas de tudo o que queres?
Ele confirmou com a cabeça e mestre Atemóia concluiu:
Estás no bom caminho, com o tempo aprenderás a querer apenas o que necessitas.
Mas como saberei o que necessito? — insistiu o estudante.
O mestre olhou-o por muito tempo e disse-lhe:
Fazes estas perguntas porque queres ou porque necessitas?
O estudante ficou calado por muito tempo e depois disse com um sorriso:
Agora que as fiz que interessa isso?
O mestre sorriu também, virou as costas, e abandonou o local.

II

Também eu, como o estudante, andei (hoje) às voltas com a ideia do que quero e do que necessito. Também eu, como mestre Atemóia, sei que só quem faz as perguntas é que pode respondê-las.

Pensamentos imperfeitos

Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar

Fernando Pessoa, O livro do desassossego

I

1. Entre mim e a vida há um muro intransponível. Por mais certo que esteja da sua existência, a vida está fora do meu alcance.

2. Entre mim e a vida nada existe. A não ser a minha incapacidade de viver com se eu fosse a própria vida.

3. Entre mim e a vida há um vidro ténue: a vida é um espectáculo e eu sou um mero espectador.

4. Entre mim e a vida há uma ponte. Por mais que a atravesse volto sempre ao ponto de partida.

II

Todos os pensamentos são imperfeitos, nada mais fazem que apontar-nos caminhos.

Poemas incompletos

I

Noadhibou

Sento-me no areal pontilhado de detritos.
No céu, sempre igual, brilha um sol branco;
no mar, a perder de vista, centenas de barcos
enferrujam ao som de um comboio
que parece não ter fim.

Que outra coisa posso pensar a não ser que
a realidade não passa de um sonho?

II

Dakhla

Não escrevo com fome,
nem com a barriga cheia.

Não escrevo com a cabeça,
nem com o coração.

Quando escrevo, não sou nada,
só assim posso ser tudo.

III

Em viagem

Quando parto,
(para dentro de mim próprio)
sei que só encontrarei
o que levar comigo.
Por isso, viajo leve e
avanço sem hesitar.

Só no deserto se encontram oásis.

IV

Chegada

Ao chegar verifico,
sem surpresa,
não ser o mesmo que partiu.

No entanto,
agora como então,
limito-me a ser quem sou.

Evidência

I

As palavras
caminham para longe
em silêncio.

II

Num momento de exaltação disse tudo o que lhe veio à cabeça, e só quando se calou é que percebeu que ficara tudo por dizer.

III

Às vezes tenho a sensação de que preciso calar-me para me ouvir.