Na estrada de Damasco


A estrada curvava para a direita, mas o carro seguiu sempre em frente, sem hesitar, feito trajectória: desceu a encosta num longo rasto de pó e imobilizou-se num estrondo surdo contra a árvore isolada.

O homem sentado ao volante, o sangue a escorrer-lhe num fio pelo lado direito do rosto, ficou quieto, de olhos bem abertos e minutos decorreram até que passou lentamente um dedo pela testa, o ergueu em frente ao rosto e procedeu a uma prolongada inspecção.

Depois saiu do carro e ficou de pé ao seu lado, olhou a árvore, o tronco largo, os ramos torcidos, a copa frondosa, e descansou o olhar no horizonte, na direcção do sol que descia. Respirou fundo, inspirando e expirando ruidosamente, deu alguns passos e sentou-se encostado à árvore, de costas para o carro.

Pouco tempo depois fechava os olhos e adormecia.

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Este blog chegou ao fim. A estrada que percorri trouxe-me sem dúvida uma revelação, talvez uma capitulação, talvez uma entrega, e sem dúvida um recomeço. Este blog quase secreto, ou nada secreto, pois algo que quase é já não o é ou não o é ainda, reflectiu um caminho que percorri. Aos poucos que me acompanharam devo esta explicação que muitos dirão que nada explica. No entanto, percorri a minha estrada, o meu caminho, este mesmo que construo enquanto avanço, e que só me pode levar onde tenho de ir.

Até à próxima!

Ai das palavras

Regresso de fim-de-semana quando, de repente,
bigode e farta pêra, fato e gravata,
os olhos turvos de tédio,
enorme, gigantesco, descomunal
dou de caras com

o rosto da verdadeira mudança

e fico triste, e zangado, e com pena,
não da ridícula carantonha assim pomposamente designada,
mas daquelas pobres palavras
lamentavelmente, irremediavelmente
expostas ao olhar de quem passa,
lúgubre monumento às palavras que
morrem todos os dias num silêncio envergonhado
sem nada terem para dizer.

Por isso escrevi este poema,
com essas mesmas palavras,
para que possam agora e aqui
chorar e rir de indignação.

Comprimidos para espairecer


I

Todos os pontos acreditam numa mesma e incontestável verdade: o universo tem um centro.

II

A magia tem um único requisito: é preciso acreditar nela.

III

O amor não tem chave, é ele mesmo a chave.

IV

Quando as coisas lhe corriam mal, ficava bem, quando lhe corriam bem, melhor.

V

Era muito superficial, toda a sua profundidade estava à superfície.

VI

O seu eu era uma âncora mergulhada no sonho que o mantinha à tona do real.

VII

Primeiro excitou-o, depois paralisou-o, e por último matou-o.

VIII

Quando escrevia não tentava, nem por um instante, dizer o que queria, mas apenas o que não conseguia deixar de dizer.

IX

Quando lhe pediam versos, vestia-se de palavras e fazia-se poema.

X

Ao sétimo dia descansou, e depois nunca mais voltou a trabalhar.

Comprimidos

VIII

A verdade do escritor

Quando escrevia não tentava, nem por um instante, dizer o que queria, mas apenas o que não conseguia deixar de dizer.

A minha vida de todos os dias

I

Exercício poético

O médico diz–me para caminhar
no mínimo quinze ou vinte minutos
todos os dias

uma roupa, uns sapatos confortáveis
e andar o mais rápido possível
sem interrupções,
enquanto puder falar sem perder o fôlego

e eu faço-o,
ando sem parar,
o mais depressa que posso,
e digo poemas em voz alta

mas a voz logo se me embarga,
e eu calo-me,
respiro fundo,
e só depois continuo.

II

Uma maneira de sentir e de pensar a vida

Não tento compreender-me
nem compreender o que me acontece
e evito quaisquer explicações.

Prefiro acreditar em mim mesmo
e naquilo que me acontece, o que
é muito mais difícil,

mas deixa-me muito mais perto
da verdade do meu ser.

O criador como médium

Acredito muitas vezes que o criador é um intermediário entre os homens e qualquer coisa como um imaginário colectivo, um lá atrás que ele descobre e revela.

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Os poetas não inventam os poemas
O poema está algures lá atrás
Há muito tempo que lá está
O poeta não faz senão descobri-lo.

Jan Skacel, citado em A arte do Romance de Milan Kundera

Sentado, nada fazendo

Sente-se, diz-me,
e eu deito-me,
ou reclino-me,
nem sei bem e,
pouco depois,
fico em silêncio,
olhando para fora de mim,
de boca bem aberta,
crispado, tenso,
mas também tranquilo, liberto e,
ao mesmo tempo,
por mais estranho que pareça,
muito perto de mim mesmo.

[Sentado na cadeira do dentista, nada fazendo, interroguei-me se haveria situação menos poética, e quando cheguei a casa escrevi este poema que de alguma forma relata essa experiência. Não é, no entanto, uma resposta a essa pergunta, é ele mesmo uma nova pergunta.]

Ser

Tenho o dom de recordar
e o dom de esquecer e
um e outro são afinal
uma e a mesma coisa
a que eu chamo ser

Todos contamos histórias e alguns até as escrevem

Todos contamos histórias, essa é que é essa, ainda que uns o façam muito melhor do que outros e com mais frequência. Diz-se que a necessidade aguça o engenho, e talvez por isso a maior parte de nós apenas conte histórias quando tem de arranjar uma qualquer desculpa. No entanto, contar histórias é talvez a característica que mais nos define como humanos e, como disse a começar, todos o fazemos. Alguns de nós até as escrevem, como eu, e gostaria de partilhar a minha experiência nesta área escrevendo com vocês algumas histórias muito pequenas, em que se mostra mais fácil perceber como são feitas.

É claro que se escreve escrevendo, tal como se faz qualquer coisa fazendo-a, por erro e tentativa, e é isso que vou fazer. Primeiro é preciso começar. Uma qualquer pequena frase (ou ideia) é suficiente.

Como por estes dias tenho ouvido falar muito do Euro Milhões e do que aconteceria a quem o ganhasse, é mesmo por aí que vou começar: "um homem ganhou o maior prémio de sempre no Euro Milhões". É afinal o que todos gostaríamos, mas o que aconteceria? Pois bem, a história poderia ser aquela mesma que todos sonhamos: (1) Era uma vez um homem que ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões e viveu feliz para sempre.

No entanto, e espero que concordem, seria uma história bastante comum e aborrecida: sem mistério e sem surpresa. Vejamos pois outra possibilidade: (2) Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. Depois acordou, e foi a correr entregar o seu boletim.

É ainda uma solução fácil mas já diz muito mais que a primeira, não acham? Faz-nos pensar, faz-nos rir, perturba-nos. Como fazer então? Por que não quebrar a relação causa e efeito que se estabelece normalmente entre o dinheiro e a felicidade? Por exemplo, assim: (3) Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. Durante algum tempo foi feliz. Depois, nem por isso. Mas ainda hoje é rico.

Está um pouco melhor, abre mais possibilidades, deixa mais margem de manobra ao leitor, mas pode-se sem dúvida ir mais longe. Não é invulgar que alguém morra ao saber que ganhou bastante dinheiro, é uma história que já todos ouvimos. Experimentemos uma variação: (4) Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. A mulher deu-lhe a notícia momentos antes de o matar.

Confesso que gosto mais, é uma pequena história negra, faz-nos rir de nós mesmos. E se eu ganhasse o Euro Milhões seria que a minha mulher me mataria para o receber? – perguntamos a nós mesmos e rimos, rimos ao mesmo tempo que ponderamos a possibilidade de a nossa mulher preferir o prémio a nós.

Também se pode perguntar o que seria menos provável que acontecesse a alguém que ganhasse uma grande soma de dinheiro. Já pensaram? De certeza que dará uma boa história: (5) Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. No dia seguinte suicidou-se. A decisão estava tomada há muito.

Contra todas as probabilidades ele não muda os seus planos de morte, e nós rimos um riso amarelo, intrigados e desconfiados dos nossos próprios desejos. Parece-me bastante bem, modéstia à parte.

Claro que podia continuar a contar histórias a partir dessa frase, mas este texto está a chegar ao fim, por isso só acontecerá se vocês o fizerem. Estejam à vontade, contem mais histórias.

(um texto antigo revisto e aumentado)

ideias fixas e pressentimentos tristes

não me preocupo muito com o que digam de mim, e não é que me seja indiferente, mas importa-me muito mais o que eu mesmo penso

não me preocupo muito com o resultado dos meus actos, e não é que não pense antes de agir, mas depois de lançada a flecha ela irá onde tiver de ir

não me preocupo muito com o meu aspecto, e não é que queira ser feio, mas a verdade é para mim superior à beleza

não me preocupo muito com a realidade, e não é que viva afastado dela, mas há muito que deixei de a distinguir do sonho

na verdade, não me preocupo muito, e o único conselho que dou a mim próprio é "seguir em frente sem hesitar".


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Um pouco mais e um pouco menos

Às vezes digo a mim mesmo que
precisava de um pouco mais
disto e daquilo
um pouco mais de paciência,
de teimosia, de irreverência
um pouco mais de confiança,
de sabedoria, de perseverança
mas, pouco depois,
dou comigo a pensar que
tudo o que necessito é
de um pouco menos
disto e daquilo
um pouco menos de falsa segurança,
de medo e de arrogância,
um pouco menos de tudo que
em mim é excesso,
tudo o que oculta quem sou,
tudo o que impede que eu seja
um pouco mais,
um pouco menos

O meu amor

Nunca, mas nunca,
me queixo do amor,
nem me regozijo,
vivo-o apenas,
sem reservas,
mas também
sem esquecer
que um só nome
esconde muitas formas,
e todas elas revelam
quem eu sou.

Poema completamente desnecessário

Não duvido,
nem por um momento,
mas chego a pensar
ser um sonho,
tão estranho é
o que nos mantém
separados e,
no entanto,
predestinados
ao encontro,
semente e terra fértil,
água e palma da mão,
como este poema
que se limita
a existir.

O tempo da obra de arte


Às vezes apetecia-me ter aquele género de erudição que me permitisse sem esforço convocar diversos autores à volta de um tema.

- Demoras muito tempo a escrever um romance?
- Escrevê-lo em si não. É um processo bastante rápido. Em menos de dois anos escrevi Cem anos de Solidão. Mas antes de me sentar à máquina demorei quinze ou dezassete anos a pensar nesse livro.
- E demoraste um tempo igual amadurecendo O Outono do Patriarca. Quantos anos esperaste para escrever a Crónica de Uma Morte Anunciada?
- Trinta anos.

(in O Aroma Goiaba, Gabriel Garcia Marquez e Plínio Apuleyo Mendonza)

Entre as muitas virtudes de Chuang-Tsu contava-se a habilidade para o desenho. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsu disse que precisava de cinco anos de tempo e de uma residência com doze criados. Passados cinco anos o desenho não estava ainda começado. “Preciso de mais cinco anos” disse Chuang-Tsu. O rei concedeu-lhos. Ao fim dos dez anos, Chang-Tsu pegou no pincel e num instante, com um único traço, desenhou um caranguejo, o caranguejo mais perfeito que jamais se tinha visto.

(in Seis propostas para o próximo milénio, Italo Calvino)

Comprimidos

VI

O seu eu era uma âncora mergulhada no sonho que o mantinha à tona do real.

VII

Primeiro excitou-o, depois paralisou-o, e por último matou-o.

Do Paraíso

Hoje,
por breves momentos
(a pele acariciada
pela mesma brisa
que agitava com suavidade
o verde dos jacarandás;
o aroma forte do queijo;
o estalar do pão torrado;
uma embriaguez anunciada
em cada partícula do
meu pequeno mundo)
estive no paraíso:
o seu centro foi uma mesa de
esplanada ao fim da tarde.

A arte do romance

Folheio o livro-ensaio de Milan Kundera e de novo me surpreendo. Até os excertos sublinhados, lidos e relidos vezes sem conta, me surpreendem ainda: revejo-me neles com a mesma intensidade da primeira vez.

(...) A obra de cada romancista contém uma visão implícita da história do romance, uma ideia daquilo que é o romance (...)

a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender. (...)

O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor:"As coisas são mais complicadas do que tu pensas." (...)

a imaginação do leitor completa automaticamente a do autor. (...)

a única razão do romance é dizer aquilo que só romance pode dizer.

Do desejo

Acordo com a mesma frase com que me deitei.
Não a compreendo. Ignoro-a. O dia começa.
Levanto-me, lavo a cara, vejo um pouco de televisão.
Depois saio e compro dois croissants,
um para mim e outro para ti.
Quando volto ainda dormes.
Preparo um pequeno-almoço para dois,
sento-me de novo na sala,
e a mesma frase continua a rodar
sem explicação na minha mente:
o desejo afasta-me do mundo.

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Acordo com a mesma frase com que me deitei. Não a compreendo. Ignoro-a. O dia começa. Levanto-me, lavo a cara, vejo um pouco de televisão. Depois saio e compro dois croissants, um para mim e outro para ti. Quando volto ainda dormes. Preparo um pequeno-almoço para dois, sento-me de novo na sala, e a mesma frase continua a rodar sem explicação na minha mente: o desejo afasta-me do mundo.

Poema murmurado

Avanço
lentamente
muito
len-ta-men-te
até perder o pé
então,
mergulho
desço até ao fundo
len-ta-men-te
muito
mesmo muito
lentamente
inspiro
expiro
sou inspirado
sou expirado
encontro-te
e encontro-me
para além de nós
muito
para-além-de-nós
muito
mas
mesmo
muito
para-além-de-nós

VISÕES


I

Noadhibou

Sento-me no areal pontilhado de detritos.
No céu, sempre igual, brilha um sol branco;
no mar, a perder de vista, centenas de barcos
enferrujam ao som de um comboio
que parece não ter fim.

Que outra coisa pensar, a não ser que
a realidade é um sonho?


II

Dakhla

Não escrevo com fome,
nem com a barriga cheia.

Não escrevo com a cabeça,
nem com o coração.

Quando escrevo, não sou nada,
só assim posso ser tudo.


III

Em viagem

Quando parto,
(para dentro de mim próprio)
sei que só encontrarei
o que levar comigo.
Por isso, viajo leve e
avanço sem hesitar.

Só no deserto se encontram oásis.


IV

Chegada

Ao chegar verifico,
sem surpresa,
não ser o mesmo que parti.

No entanto,
agora como então,
limito-me a ser quem sou.

As minhas palavras

Não, não penses,
não faças nada
(digo a mim mesmo)
ou as palavras nunca
pousarão neste poema,
as palavras certas,
as que falam de si mesmas
e do que está por detrás delas,
não estas que escrevo,
que falam apenas de mim
e nada mais.

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Não, não penses, não faças nada (digo a mim mesmo) ou as palavras nunca pousarão neste poema, as palavras certas, as que falam de si mesmas e do que está por detrás delas, e não estas que escrevo, que falam apenas de mim e nada mais.

Entre mim e a vida há um vidro ténue

Ajudem-nos!
Ajudem-nos!
Imploravam eles,
desesperados.
E eu,
eu ouvia,
sentia-me tocado,
mas nada podia fazer.
Eles estavam do lado de lá
e eu estava do lado de cá.
Então,
na minha impotência,
lembrei-me de uma frase
de Bernardo Soares,
escrita por Fernando Pessoa
(ou o contrário?),
e disse-a em voz alta.

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Ajudem-nos! Ajudem-nos! Imploravam eles, desesperados. E eu, eu ouvia, sentia-me tocado, mas nada podia fazer. Eles estavam do lado de lá e eu estava do lado de cá. Então, na minha impotência, lembrei-me de uma frase de Bernardo Soares, escrita por Fernando Pessoa (ou o contrário?), e disse-a em voz alta.

A incoerência dos filósofos

Aos quarenta e oito anos, após uma longa e penosa busca, descobriu a sua primeira certeza e, nos anos seguintes, outras se lhe juntaram, formando uma compacta e luminosa sabedoria que ele logo quis partilhar com toda a gente. Mas não foi preciso muito tempo para perceber que laborava num erro: para chegarem onde ele tinha chegado, os seus seguidores teriam de percorrer o mesmo caminho que ele percorrera, e isso era de todo impossível, pois nunca, mas nunca, um caminho se repete. E esta foi afinal a última certeza de que ele precisou para viver de acordo consigo mesmo.

A forma do amor

O meu corpo
e o teu
há muito ganharam
uma mesma forma,
como a pergunta
e a resposta que
de tanto repetidas
se fundem
e confundem
com se fossem
uma só.
São assim
os nossos corpos,
tão moldados
um no outro que,
quando nos unimos,
não consigo saber
com certeza
onde um começa e
o outro
acaba.

A história da minha vida

Não acredito que a história da nossa vida já esteja escrita, não obstante o considerável peso genético e histórico e social que cada um de nós carrega.

Prefiro acreditar que podemos escrever a nossa própria história, apesar de nunca o fazermos como gostaríamos.

Mas às vezes quase acredito que ela se escreve sozinha.

Pinga-amor

O amor é,
em mim,
uma torneira
irremediavelmente
avariada.
Pinga dia e noite,
teimosa,
e nada posso fazer,
paciência.
Mas às vezes, confesso,
fico furioso,
e aperto-a
com toda a força.
Depois, fico com medo
de a estragar de vez,
de não mais
a poder abrir,
e paro.
A verdade é que
eu não ia querer
que isso acontecesse.